29 de maio de 2011

QUANDO ELE FOI NINGUÉM

Ele chegou aqui, não posso dizer zangado, mas, talvez, indignado. Não posso assegurar que seja mesmo indignado, porque nos pareceu meio espantado e, sem explicar, não parava de repetir, nem podem imaginar o que me aconteceu! Nem imaginam… não sei como isto me pôde acontecer! E gesticulava, mantendo um olhar no infinito, talvez reflexivo ou interrogativo. Sei lá!
A nossa curiosidade tornou-se inquietação e insistimos para que contasse a estória ou a coisa, sei lá!
Achámos, ainda, que estava quase lívido e de rosto, por vezes, crispado, enquanto agarrava um girassol com raiz e tudo, que, coitado, em breve estaria murcho, com aquela gesticulação toda. Quando já nos estava a irritar demasiado, gritámos para que começasse o relato.
E começou: Sabem o que é sentir que não existo? Eu não existi, hoje. Eu não consegui provar que eu era eu. Fui à prisão. Como é hábito, pensámos nós. Todos sabemos que ele lá vai uma vez por mês. E então? Pois então, aconteceu o inconcebível, cheguei lá sem nenhum documento. E sublinha “nenhum”. E repete “nenhum”. Ficou tudo esquecido, algures, num cafezito onde parei.
E então? E então o guarda disse-me logo: Você está ilegal. Pois estou, disse eu, mas por favor, não me prenda. E disse que eu não podia fazer a visita habitual. E eu compreendi que ela tinha razão, mas insisti e disse que muitos guardas me conhecem porque eu sou visita do recluso número tal e eu sou a única visita que ele tem e com boa vontade chamavam-se aqueles dois ou três guardas que nos revistam à entrada e eles faziam prova de que eu sou eu e, de facto, não tenho fotografia, mas tenho a minha cara que diz que eu sou eu e também não tenho nenhum documento, mas tenho a minha palavra que prova que eu sou eu e não estou a mentir porque o meu nome é esse que está aí autorizado a entrar e esse nome é meu e eu é que tenho esse nome. Mas não resultou.
Então pedi para me darem o livro de reclamações só para dar conta da minha indignação pela falta de flexibilidade, porque eu bem sei que estou numa prisão de alta segurança, mas conhecem-me, bolas, sabem que eu sou eu e não um eu com outro nome ou com outra cara. Eu sou eu! E repeti o meu nome.
E então recusaram-se a dar o tal livro porque eu não posso provar que eu sou eu e os livros de reclamação só se dão a quem se identifica. E eu disse outra vez o meu nome e o número do meu B.I. e o meu NIF e a minha morada e a minha naturalidade e a minha filiação e o meu estado civil e eles não acreditaram e, ainda por cima, não podia conduzir, porque eu podia não ser o dono do carro e até podia estar a roubar o meu próprio carro e ainda por cima, sem carta de condução. Eu até lhes mostrei os documentos do carro com o meu nome, mas os documentos não têm fotografia e, portanto aquele nome podia não ser o meu. Eu insisti e pedi que me tirassem uma fotografia para eu pôr ao pé dos documentos para provar que eu sou eu. E até tive tempopara associar esta guerra ao Nome de Guerra  de Alamda Negreiros, onde ele diz que "proceder como anónimo é contra as regras do jogo". Vi-me como um anónimo em terra conhecida e por entre gente conhecida e tive medo que me prendessem e então escapuli-me e apanhei este girassol que agora até já está um bocadinho murcho.
Depois ainda pensei na Ana Paula Guimarães que assegura que: ... a integração social pressupõe a necessidade de um nome, civilmente o ser só existe depois do nome dado, como se fosse ele a fecundar o homem de sociabilidade, a ligá-lo a uma memória e a organizar a existência humana numa teia de relações. Mas lá na prisão as coisas não funcionam assim e eu percebi claramente que não chega ter um nome, como diz a Ana Paula. É preciso provar que o nosso nome é nosso, coisa que eu não consegui e aí até percebi que não existia e percebi também que os papéis são mais importantes que o meu próprio nome porque, na verdade, só eu é que posso acreditar que o meu nome é meu. Os outros todos podem desconfiar.
Vou reler Nós e os nomes em NÓS DE VOZES Acerca da Tradição Popular Portuguesa, de Ana Paula Guimarães e, se não for muito ofensivo, ofereço uma cópia ao guarda que me impediu de entrar na prisão e a quem eu pedi para escrever o meu nome num papel e para mo colar no casaco, com um carimbo da prisão para que, lá dentro, no meio dos guardas, dos reclusos e das famílias, ninguém duvidasse que eu era eu, mas ela disse que depois faltava a fotografia e quando eu lhe disse que ia buscar a minha máquina fotográfica para me fotografar e assim já podia mostrar a minha fotografia a quem duvidasse, ela disse que a máquina não podia entrar na prisão.-

1 comentário:

Luis Eme disse...

o bom senso é tantas vezes esquecido, Teresa, neste país de extremos...