22 de setembro de 2010

TODOS - CAMINHADA DE CULTURAS - A VÓS

A Vós é peça de teatro idealizada por Ainhoa Vidal e interpretada por vários actores, entre eles a Mafalda Saloio.
Diz-se avós, a voz, a vós, sempre igual, com o mesmo som. E pensa-se coisas diferentes. E recebe-se tanta coisa, quando se vê este espectáculo a que os seus autores quiseram dar este ambíguo nome. Foram buscar avós que frequentam centros de dia, na zona do Martim Moniz e deram-lhes voz. Ouviram-nos. Saborearam as suas estórias. Recriaram-nas e entregaram-nas a nós.
Foi, integrado no Festival TODOS Caminhada de Culturas, nos dias 17, 18 e 19, num antigo edifício, em reconstrução. Começaram na rua, com mezinhas, com superstições rezadas tantas vezes pelos nossos avós. Levaram-nos para esse edifício que eles encheram de memórias. Ouvimos os postais de parabéns, dos nossos avós. Vimos os cuidados que netos e avós se dedicam mutuamente. Assistimos a um banho, simbolicamente, dado a uma jovem de branco, por uma avó rural, de negro vestida porque, como diz o programa, A Vós é um espectáculo sobre a transmissão e a passagem de testemunho. Uma ponte entre quem está prestes a partir e quem vê a sua vida ganhar um passado e um futuro.
É uma vivência extraordinariamente bela, humana, comovente e genial.
A Mafalda já tinha tido experiência semelhante em Palmela. E aqui revelou-se, mais uma vez, grandiosa, na sua forma me nos encantar com o corpo, a expressividade, os gestos, o sorriso e tudo o mais que se torna indizível, mas bem visível aos olhos e ao coração, com a avó Esmeralda sempre presente.




8 de setembro de 2010

Desperdício à CP

DESPERDÍCIO À CP

Concordo inteiramente com a crítica que Carlos Cipriano faz, na Gazeta das Caldas, de 23 de Julho de 2010, à política de desperdício da CP - A CP continua a promover idas à praia em viagens longas e com transbordo. É que gastar dinheiro em folhetos que vendem promessas enganosas é um desperdício. Ir das Caldas a S. Martinho, diz Carlos Cipriano “pode, de facto, ser uma boa alternativa”, mas não o é no mês de Agosto, precisamente quando a CP nos incita a utilizar os seus ineficazes serviços. Quem deseja aproveitar a vantajosa situação das estações de Caldas e S. Martinho – a primeira, no centro da cidade e a segunda, a 100 metros do mar – e dar um passeio nas óptimas passadeiras dunares e regressar antes da grande enchente não pode confiar na CP. Em tempo normal, quer dizer, fora de férias, o passageiro apanha o comboio das 8,31 e, dentro de 13 minutos, está na praia, sem canseiras e sem provocar poluição por sua própria conta, como faria com a sua viatura. Regressa, tranquilamente, às 10,09, numa viagem super agradável de poucos minutos. Nessa altura, o comboio é pontual. Os passageiros são pouquíssimos. Rapidamente descem uns e sobem outros e “lá vai o comboio, lá vai…”
Mas no Verão tudo isto se transforma. O comboio que deveria partir das Caldas às 8,31h aguarda 10, 15, 20 minutos ou mais, que se esgote a fila de utentes para adquirir bilhete. Com apenas um funcionário (suficiente em tempo de acalmia), a bicha prolonga-se com dezenas de pessoas desesperadas. No regresso, a mesma coisa. O comboio que deveria passar por S. Martinho a recolher os passageiros às 10,09h, passa quando pode.
Por conseguinte, em tempo de Verão, a CP faz-nos desperdiçar o nosso tempo, aguardando nas estações de Caldas e S. Martinho mais de 40 minutos, num percurso de ida e volta de 23 minutos e rouba-nos o tempo de descanso. Em vez de chegar às 8,11 a S. Martinho, chega por volta das 8, 45. Com atrasos de 30 minutos, numa viagem de 13 minutos e de poucos quilómetros a CP não chega a lado nenhum, nem os tais panfletos servem para nada!

30 de agosto de 2010

A Gazeta das Caldas de 20 de Agosto, pg. 18 e 19, noticiava a morte de Figueiredo Sobral, artista plástico, que conviveu, nas Caldas da Rainha com a reduzida, mas significativa, comunidade artística desta cidade, havendo, ainda, no Inferno da Azenha, um mural da sua autoria. Muita gente se recorda dele, das festas que dava em sua casa, nomeadamente um casal caldense com quem me cruzei, conversando sobre a obra de Armando Correia.
Nessa altura, há talvez uns três meses, tentaram eles, seus amigos, indagar do seu estado de saúde e então soubemos que não seria possível conversar com ele, precisamente sobre o período em que o Armando trabalhou com e para ele, porque tinha perdido a fala havia poucos dias. Mais uma memória que o tempo me impediu de registar. Mas, falar das pessoas, através dos seus amigos e conhecidos, é, sem dúvida, conhecê-las também. À fraca recordação que me restava de Figueiredo Sobral, juntaram-se episódios por ele vividos, sempre controversos, as suas piadas, as peripécias com amigos e companheiros de trabalho, descrições das festas na Rua Leão Azedo e tantas outras curiosidades relacionadas com os seus clientes e com os materiais que usava, incluindo as técnicas inovadoras que trouxe para trabalhar o ferro. A isto se referiu, por exemplo, o Renato, entretanto desaparecido.
Na altura, também tive oportunidade de falar com quem, por feliz coincidência, se cruzou com uma camioneta que descarregava num caixote do lixo, material que lhe chamou a atenção e o fez parar. Era o resto de tudo o que havia sido abandonado na casa onde residira Figueiredo Sobral. Livros, esboços, pinturas, jornais e muita tralha, tudo havia sido considerado lixo por alguém, certamente, desconhecedor destas preciosidades, de imediato valorizadas por alguém mais sensível que, a tempo, ainda resgatou algumas do fogo e do caixote .
Das notas que fui recolhendo, escrevi, talvez em Maio deste ano, o pequeno texto que agora acho oportuno inserir neste blog.

Nos finais dos anos 60, e até metade da década de 70, havia na Rua Leão Azedo três ateliês pertencentes a Figueiredo Sobral. Eram eles de cerâmica, de tapeçaria e de metais.
As encomendas eram muitas e vinham quase todas do estrangeiro, sobretudo dos Estados Unidos da América. Quando chegavam os pagamentos das obras, havia convívios, que Figueiredo Sobral e a sua esposa, Quina Sobral, também pintora, partilhavam com muitos amigos.
Festejava-se e comia-se do melhor.
A nata da comunidade de intervenção vinha diligente e sem alarido, até às Caldas. Carlos Paredes, Natália Correia, entre outros, eram assíduos. Os bonecos de Santo Aleixo também para lá eram chamados e faziam o seu papel de bonecreiros descarados.
Com o 25 de Abril tudo começou a acabar. O grande promotor dos ateliês e das festas partiu para o Brasil, atrás dos clientes. Partiu de barco pelo horror que tinha a aviões. Partiu e deixou tudo, diz quem sabe e viu. Ficou a casa mobilada e grande espólio e acervo de obras e rascunhos. Entretanto, tudo desapareceu. Quase tudo. Houve alguém que conseguiu livrar da fogueira alguns apontamentos e algumas relíquias.
De Figueiredo Sobral, directamente, nada mais podemos saber. De há umas semanas para cá, perdeu a fala, não reconhece ninguém e de nada se lembrará. Fica, assim, uma estória interminada à qual só se poderão acrescentar contributos, de quem com ele conviveu, nomeadamente da pequenita que acompanhava o pai aos ateliês e às festas e que tinha a sorte de receber, pelos anos e pelo Natal, miniaturas feitas pelo artista ou pela Quina. Hoje, com mais de 50 anos, ela lembra esses tempos como tempos de deslumbramento e êxtase.

25 de julho de 2010

Caldo de cultura da alimentação

Todos os municípios promovem semanas gastronómicas, reclamando, cada um deles a legitimidade da patronagem de determinado prato, de determinado doce ou de qualquer outra confecção. É tradicional daqui, dizem uns. É a nossa tradição, dizem outros.
Na base de tais afirmações, está, frequentemente, uma crua ignorância sobre cozinhados e alimentação. São os políticos que, normalmente, se arrogam defensores deste e daquele prato, com o intuito de prestigiar a região ou de acirrar os vizinhos que também eles se consideram legítimos proprietários da mesma iguaria.
Fazem-no porque são políticos e, com frequência, desconhecedores das viagens que os alimentos fizeram (e fazem) ao longo dos continentes e dos tempos e sem se darem conta que a gastronomia é um processo em curso, em permanente construção.
Apesar de saber tudo isto, surpreendi-me com o testemunho de um presidente de uma junta de freguesia do concelho das Caldas da Rainha, que afirmou hoje mesmo, a uma rádio local, num programa intitulado Voz da Região, o estranho caso da descoberta da origem do cozido á portuguesa: “O cozido à portuguesa teve origem precisamente nas Caldas da Rainha, mas fazia-se com grão. O cozido à portuguesa é caldense”.
E pronto. Está dito. O cozido à portuguesa, afinal, deveria chamar-se “cozido à caldense”.

23 de julho de 2010

O que são comportamentos estranhos

Num recente noticiário, um psicólogo alegava que o presumível matador de Torres Vedras já tinha há muito comportamentos estranhos.
Os vizinhos apercebiam-se que ele era estranho - andava em carros caros. Tinha uma casa bizarra. Acompanhava com jovenzinhos. Tinha uma caterva de câmaras de segurança e visionamento à volta da casa. Publicava vídeos visionários.
Era estranho, portanto.
E nada se fazia para se descobrir a razão de tanta estranheza ou bizarria.
Há muita gente que anda em carros ricos, tanta outra que acompanha com jovens ou que publica tal género de vídeos. Não é por isso que é investigada. Na verdade, não há regras nem limites para considerarmos isto ou aquilo estranho. A indignação é que leva a classificar a coisa ou alguém de estranho.
Para mim, é estranho o que ouvi há pouco, num banco.
A menina dirigiu-se ao balcão e assegurou à funcionária que o seu cartão havia sido engolido numa máquina, quando pretendia levantar dinheiro. Os funcionários desse banco não lhe haviam restituído o cartão, por uma questão de segurança, apesar de ela se ter identificado. Enviaram-na para ali, para aquele banco que havia emitido o seu cartão. A funcionária confirmou o estranho caso desses funcionários, como normal e perfeitamente dentro das regras.
O cartão ficou automaticamente cancelado e a jovem não poderia já usá-lo, apesar da razão do engolimento ser da responsabilidade de uma inesperada avaria da máquina. Teria, pois, de fazer o levantamento naquele banco onde eu estava e, inevitavelmente, tive de ouvir a conversa. Mas, para isso, teria de pagar um cheque. A menina insurgiu-se e alegou a injustiça da medida. Que eram regras, contrapôs a funcionária. Que era injusto e que queria reclamar, contra argumentou a menina. E reclamou. E a funcionária chamou o gerente. E o gerente confirmou que a menina tinha de pagar o cheque porque eram as regras do banco. E a funcionária fez-lhe um certo olhar e ele olhou para a reclamação e então ele disse:”levante lá o dinheiro e pronto. Não paga nada”. E a menina recebeu o dinheiro e a funcionária disse que, então retirava a reclamação e a menina disse que não, que não retirava, que mantinha. E manteve.
Pareceu-me estranho este olhar entre funcionária e gerente e muito mais estranha, a decisão do gerente, infringindo as regras do banco. Mas, o que diria o psicólogo se visse a forma solícita como a funcionária passou a tratar a menina e o desejo estampado no rosto e no gesto das mãos que se preparavam para rasgar a queixa da cliente?
É, pelo menos, estranho. Investigue-se por que razão se passa tão rapidamente de um comportamento inserido nas regras de bem-fazer, para as regras de bem atender os clientes.

22 de julho de 2010

Semana Internacional das rendas de Bilros

Começa hoje e prolonga-se até dia 25, a Semana Internacional de Rendas de Bilros, em Peniche.


Será feita a apresentação e o lançamento de AMAR PENICHE, da autoria de IDA GUILHERME.


21 de julho de 2010

Pedro Malaquias

Todos os dias são dias para ouvir Pedro Malaquias na Antena 2.
Todos os dias ele faz três abordagens às notícias do dia.
Aparece mais ou menos às 7,30; mais ou menos às 8,30 e mais ou menos às 9,30.
Todos os dias, normalmente, depois da hora certa.
Todos os dias, excepto fins-de-semana e feriados.
Diz João Almeida, o locutor, que ele apresenta a leitura dos jornais. Eu direi que ele apresenta uma variada e comentada leitura das pequenas notícias do dia. Logo na primeira crónica, refere as grandes, as inevitáveis, embora, sempre com uma certa subtileza, mas sempre acompanhadas de um cheirinho das que fazem a espuma dos dias. Das que não fazem sururus nos grandes corredores.
A seguir, continua na linha da referência a uma das que é vista pelo conjunto dos jornais, abordando com mais profundidade uma ou outra que escapa ao leitor das parangonas. E, finalmente, traz ainda outra, escrita à margem, para se/nos interrogar sobre o insólito, o mesquinho ou a estupidez.
Ele relata o que lê. E bem! Ele escreve o que lê. E bem! Ele lê o que escreve! Mas com que maestria!
Hoje, na sua última intervenção leu o que escreveu sobre a notícia do jornal I, segundo o qual e com base em investigações feitas num qualquer centro de investigação, os feios são mais criminosos do que os ricos. Mais ladrões e mais homicidas!
Esta investigação terá começado quando um criminoso, ao ser interrogado sobre o seu comportamento, responde ao juiz, por que faz do crime o seu modo de vida: por ser demasiado feio para ser admitido em qualquer emprego.
Oiça-se o final da crónica, mais ou menos descrita desta forma: pegue-se numa beldade universal, vistam-se-lhe fatos andrajosos; desgrenhem-se-lhe os cabelos (sujos, sujíssimos, de preferência!); evite-se-lhe o banho durante uma semana; deixem que as unhas ganhem o tempero da terra … ah! E retire-se-lhe todo e qualquer vestígio de maquilhagem.
Veja-se agora no que dá.
Nota à margem: Sou fã desta forma de comentar as notícias, tal como Francisco Mateus, o que não me impede de dar a ver outra opinião que considera os comentários do "Sr. Pedro Malaquias" "saloios e entediantes".

20 de julho de 2010

Gazeta das Caldas

Sempre que a minha vida profissional me leva para o Norte, para o Sul ou para as ilhas, o primeiro gesto que tenho ao chegar é procurar o jornal da terra, a agenda cultural e as iguarias que são consideradas identitárias da região - os doces, os vinhos, os queijos, os enchidos, as sopas e outros pratos.
E assim alimento a minha solidão.
Obviamente que leio os jornais da região onde vivo e estendo o meu interesse até Leiria e Santarém (gosto de O Mirante, por exemplo).
Leio a Gazeta das Caldas semanalmente, de ponta a ponta (exceptuando os relatórios da Assembleia Municipal). Ultimamente tenho apreciado especialmente o excelente trabalho intitulado Uma Empresa, Várias Gerações, iniciado em meados de Maio. A Gazeta tem-nos trazido um percurso que podemos fazer pela cidade e que nos obriga ou a entrar, ou a espreitar com muita curiosidade para a história que cada uma das lojas encerra. Recordamos as fotos antigas que a Gazeta publica e olhamos para os seus descendentes com admiração. São seus autores Carlos Cipriano, Fátima Ferreira, Natacha Narciso e Pedro Antunes.
Parabéns pela iniciativa que, espero eu, levará os caldenses a valorizar o comércio que temos na cidade.

13 de julho de 2010

Mónica Calle e Companhia

Que o público do Festival de Almada é fiel e compreensivo, já sabemos, mas Mónica Calle exagera. Abusa das qualidades do público. Deixar uma plateia de gente interessada em ver Tchecov, durante mais de meia hora na penumbra, com os actores a falarem para eles próprios, sem se conseguir distinguir o que dizem, nem quem diz, é desprezar o público, é desconsiderá-lo e talvez perdê-lo.

12 de julho de 2010

O Público do Festival de Almada

O nível etário do público do 27º Festival de Almada passa pela idade deste mesmo festival. Se estas pessoas tinham uma média de 25 anos, quando o festival começou, hoje têm mais uns trinta anos. Isto dito sem qualquer rigor. Olhando por sobre as cabeças dos espectadores do Teatro Municipal, ou olhando os seus rostos, tanto no Fórum Romeu Correia, como no Palco Grande da Escola D. António da Costa ou ainda no Teatro D. Maria II, o cenário repete-se. Gente na casa dos 50, 60 anos, à mistura com jovens, os que nos irão substituir, a nós, e a Joaquim Benite.
Público fiel, fidelíssimo.
Assiste aos espectáculos até ao fim, mesmo quando abusam da paciência dos espectadores. Não se manifesta contra. Nem se insurge contra o facto de todos os espectáculos começarem bem depois da hora.
Público condescendente, também!
Tudo, por amor ao teatro.
Público compreensivo, também.
Por respeito por toda uma equipa, liderada por Joaquim Benite, que soube fazer dos almadenses, um público fiel.
O festival está para durar.

5 de julho de 2010

Festival de Teatro de Almada


É Joaquim Benite que dá a cara no início deste Festival que vai na sua 27ª edição, mas por trás deste homem (felizmente) obcecado pelo teatro está uma forte equipa de produção.
Iniciou-se ontem com Uma Lição dos Aloés - Texto de Athol Fugard e encenação de José Peixoto. Diz o programa, a propósito desta peça: " No desenrolar da trama constata-se que, se é possível classificar os aloés já o mesmo não sucede com as pessoas, pois estas modificam-se e afastam-se da matriz original".
Texto metafórico sobre a condição dos homens e as tarefas a que dão maior prioridade na vida. Muito bom! Encenação discreta, aprazível e suficientemente significativa.

4 de julho de 2010

Dia da Morte da Rainha Santa Isabel

Foi a 4 de Julho que a inesperada morte de Isabel de Aragão, em Estremoz, a impediu de completar a sua missão pacificadora, entre Afonso XI de Castela e D. Afonso IV, respectivamente seus neto e filho.
Coimbra, a cidade onde ela decidiu ficar, celebra-a nesta data, com sumptuosa procissão, dedicando-lhe até o dia da cidade.
A determinação do seu filho em a levar em cortejo, para Coimbra, muito contribuiu para reforçar os laços afectivos que o povo havia já estabelecido e para criar uma auréola mística à sua volta. «Embrulharam-na num pano de lã alinhavado, passaram-lhe uma corda à cintura, e, metendo o esquife num coiro de boi com o pêlo para fora, prepararam-se para a levar debaixo do calor a Coimbra.» Assim termina Vitorino Nemésio a biografia de Isabel de Aragão que, como diz José Mattoso na introdução, «dá largas à imaginação, sem chegar a ser um romance».
Foram sete dias e sete noites de caminhada, debaixo de um calor tórrido e abrasador, ao qual o cadáver se revelou imune, exalando um suave perfume. Este foi o primeiro milagre que se anunciou pelo reino, logo seguido de inúmeras narrativas de outros que tinha a rainha por mediadora entre o Céu e a Terra. O pretexto e justificação para tanta exaltação era a grandiosa obra social que a rainha havia edificado, eram as suas virtudes de caridade, humildade e misericórdia, eram as habilidades diplomáticas que lhe deram o epíteto de pacificadora e de arauto da paz, era a sua condição de peregrina a Santiago de Compostela, condição pouco própria para uma rainha e ainda a generosidade que pontuava os seus dias. O povo, enfim, as pessoas gostam de se ver amadas e acarinhadas e são-no, por quem lhes é mais próximo, em geral, mas sentir que uma rainha lhes beija os pés, é tão excepcional que se torna lenda para poder ser credível. A rainha, na sexta-feira santa lavava ela própria os pés de mulheres leprosas e beijava-lhos. Dava, invariavelmente, esmola aos pobres que se cruzavam no seu caminho e vestia-os. Ela tratou com as próprias mãos o seu marido quando ele agonizava. Ela protagonizou inúmeras acções de caridade e humildade que fascinaram as aias, o confessor e todo o reino. E a longa procissão fúnebre que percorreu os caminhos que mediavam Estremoz e Coimbra, apoderou-se de um número mágico, o sete, para consolo dos mais cépticos.

3 de julho de 2010

Vinha da Ilha do Pico - Património Mundial



Neste mês de Julho comemora-se a classificação da vinha da ilha do Pico como Património Mundial. É o 13º sítio a ser classificado, em Portugal, e o último, até agora.

É bom recordar o trabalho que o homem teve para construir os sítios onde se abrigam as videiras - os currrais. Com saber e experiência arrumou as pedras umas em cima da outras, de forma a acoitar as plantas da maresia, mas a deixar que o ar se renovasse através de frechas sabiamente abertas. Assim se evitam temperaturas sufocantes, já que o próprio solo emana calor suficiente.

2 de julho de 2010

Julho

Julho já foi Quintilis – o quinto mês do ano - mas passou a chamar-se Julius, em honra de Júlio César que nasceu neste mês.

29 de junho de 2010

Validade dos Provérbios

Dentro de anos, os provérbios serão um bom alfobre para o estudo do tempo e da agricultura do século XX:
Pelo S. Pedro vai ver o teu olivedo. Se vires uma (azeitona) conta um cento.
(Alvito – Beira Baixa)

28 de junho de 2010

O Sol, São João e o Galo

Rebuscando nos muitos rituais que se fazem no país, aquando das festas de São João, encontram-se vestígios de símbolos que nos remetem para o culto ao sol.
Monforte da Beira é disso um exemplo. No final do dia, fazem-se as corridas de cavalos, cujos vencedores recebem um galo.
Ora, o galo é um símbolo solar. Encontramo-lo em Monforte, no solstício de Verão, e em Dezembro, no solstício de Inverno - na missa do galo! Já
aqui falámos dele.
Jaime Dias, na Etnografia da Beira descrevendo o S. João de Monforte da Beira (Vol. III, pg. 112-120), diz a respeito das corridas que se fazem na Devesa: "Posto um galo na meta e os cavaleiros, dois a dois, a certa distância, dado o sinal de partida, estes correm o mais que podem. Ganha o galo, o que chegar primeiro. As corridas duram enquanto há galos e estes, depois de disputados, são oferecidos: pelos solteiros, à noivas; pelos casados, às esposas; e, pelo vencedores que não têm noiva nem são casados, à esposa do alferes."

27 de junho de 2010

O S. JOÃO DE MONFORTE DA BEIRA

S. João no coração, mas em casa não. É a opinião de uma mulher que participava na festa. A sua e a de muitos mais monfortenses. A despesa é muita e na trabalheira nem se fala. Mas outros, muitos também, sentem uma enorme felicidade por poderem “dar” o S. João, como resultado de uma promessa.

No dia 23 de Junho, por volta das 16 horas, a bandeira de S. João vem para a janela da casa do “alferes” que é quem nesse ano “dá” o S. João. A bandeira, recebeu-a do “alferes” do ano anterior e guardou-a durante um ano, em sua casa.

Dão-se vivas ao S. João, ao povo de Monforte, aos padrinhos e ao alferes. Toda a gente participa. Todos batem palmas e uma dezena de mulheres toca adufes e entoa quadras ao S. João. Uma concertina acompanha-as e o resto da população também canta o refrão com elas.

Com o “S. João à janela”, dá-se início a uma festa que durará 24 horas. Tendo por símbolo a bandeira, esta festa une toda a comunidade na partilha de bens e alimentos.

O festeiro tem um grupo de familiares e amigos a ajudar na tarefa da distribuição de comida e bebida a todos. Dá vinho e bolos aos que vêm dar vivas ao S. João e dá com gosto. Sabe-se, no entanto, que toda a gente da aldeia contribuiu para que a festa seja em grande, dando mantimentos e dinheiro. “Dá-se conforme a afeição que a gente tem pelo alferes e pela família”, garantindo, assim, o sucesso da festa no que diz respeito à partilha.

Por volta das 9 da noite desse mesmo dia 23, o povo volta a aglomerar-se junto à casa do “alferes” onde está a bandeira.

Vêm em burros, cavalos e éguas. Dezenas de burros e dezenas de cavalos e éguas, fazem mais de uma centena de animais que, em grande desordem, aguardam, em frente à janela do Santo.

A janela está bonita e iluminada. Dão-se os últimos retoques nos cavalos que devem estar enfeitados e coloridos.

Em Monforte tanto adultos como crianças montam cavalos e burros com perícia! Há grande algazarra! Os animais começam a impacientar-se e o vinho vai fazendo efeito nos que os montam. Há atropelos, correrias e exibição de artes equestres salpicadas por maliciosas destrezas.

Mas basta alguém começar a brandir a bandeira à janela para que os ânimos se acalmem. Uma rapariga rosada e forte agita-a fortemente e grita três vezes “Viva o S. João”, “Viva o Povo de Monforte”, “Viva o Alferes!” e “Viva a Bela Sociedade”. O Povo repete energicamente os vivas. E os cavalos agitam-se.

O alferes monta o seu cavalo e ostenta a bandeira. Dos lados perfilam-se os padrinhos; os que tiveram o privilégio de serem distinguidos pelo alferes, como seus amigos ou familiares mais íntimos, para ocuparem aqueles lugares no cortejo.

Às 22 horas todos estão a postos. Repetem-se os habituais “Vivas” e começa a cavalgada! A galope percorrem as ruas de Monforte. A galope até que o inesperado e a surpresa os obrigue a estancar frente a enormes fogueiras que se acendem pelas ruas. Assim “agarra-se” o S. João! Obrigam-se os cavalos a saltar ou a evitar a fogueira.

É um espectáculo feérico, entusiasmante e empolgante. Atrás dos cavalos correm os miúdos. À frente dos cavalos escapam-se os que acendem as fogueiras inesperadamente com rosmaninho, caruma e arbustos secos. No ar sobem as faúlhas e um cheiro a fumo perfumado. A aldeia enche-se de vida na noite iluminada pelas chamas das fogueiras.

Já tarde juntam-se, de novo, ao pé da casa do “alferes”. Nova distribuição de vinho e bolos dá mais energia a cavalos e cavaleiros. Começa o arraial até altas horas e continua o convívio.

No dia seguinte, dia de S. João, pelas 9 da manhã perfilam-se, de novo, cavalos e cavaleiros para, juntamente com o “alferes”, percorrerem as ruas, agora à luz do dia. As pessoas recebem o cortejo à porta, dando esmolas e atando fitas à bandeira de S. João. Estas dádivas são promessas, mas são também uma forma de ajudar à festa.

Depois da missa do meio-dia, o alferes dá uma farta refeição a amigos e familiares. Serve-se de tudo e com muita fartura. Fica caro fazer esta festa, dizem, mas ninguém perde com ela porque o povo dá tantos alimentos e dinheiro, que o “alferes” ainda fica a ganhar. “O povo dá conforme a afeição que tem por quem faz a festa”. Assim, ajuda-se o amigo a fazer boa figura e a ser bem visto.

À tarde a festa atinge o auge com uma empolgante e participada corrida de cavalos. Habitantes e forasteiros, a pé, de carro ou a cavalo, dirigem-se para a Devesa, um enorme terreiro que, nos arrabaldes, serve de pista à corrida.

Os mirones acotovelam-se e incitam os mais afoitos a iniciarem as corridas que se fazem em pares de dois, a cavalo, de burro e até, a pé. Cada um procura um adversário que não lhe custe muito a vencer, mas também ninguém quer passar pela vergonha de vencer, sem dificuldade. Outros procuram, propositadamente, o adversário com querem ajustar contas e não se poupam a grandes esforços para o vencer.

A população aplaude, faz apostas e elege os maiores da corrida. Além deste reconhecimento público, cada vencedor ganha um galo por cada corrida vencida. Quantos mais galos trazem, mais valentes são!

A festa acaba quando o “alferes” entrega a bandeira àquele que irá “dar o S. João” no ano seguinte. Dão-se vivas ao novo alferes e agradece-se ao alferes velho!
Monforte da Beira, 1997

26 de junho de 2010

Banho Santo, pelo São João

O BANHO SANTO

Em 1925, a Gazeta, jornal das Caldas da Rainha, fazia referência ao Banho Santo que as pessoas tinham por hábito tomar, nas suas termas, no dia 24 de Junho. Era um banho muito concorrido que, segundo a crença, valia por sete!


“Quem nos pode valer?
... Só o milagroso S. João! ... O santo querido das môças e móços de Portugal ... E ele aí esteve espalhando os benesses do Ceu sobre os dois ou três mil peregrinos, assim chamados, que mais uma vez vieram procurar no tradicional banho a cura ou as melhoras de seus achaques.
Pois quem póde perder o Banho Santo! se êle é uma cura de águas; é a cura correspondente aos 20 classicos banhos prescriptos pela sciencia! ... Mas a sciencia ante a crênça tradicional, nada vale.
Vamos ao Banho Santo ... O Joãosinho de mãos dadas com a Santa Rainha Leonôr, vale bem mais do que todas as sciencias da terra! ...
E foi assim. E foi por isso que o nosso Hospital se encheu de viandantes, abrindo as suas portas à pobreza, a todos aqueles que teem religião e Fé.
3.200 banhos! Já é. Que Deus os faça voltar ao Banho Santo e que as Caldas se lembrem de promover para esse tempo alguns atrativos, pois com isso ...
revive tradições, desfolha recordações dum passado saudoso ... e desfructará o benefício material.”

Hoje ainda há uns resistentes que vêm ao banho santo. No dia 24 de Junho, não faltam, embora não voltem mais ao longo do ano. O Hospital Termal mantém a tradição da sua gratuitidade.

25 de junho de 2010

Jano, de Janeiro a Junho

Em Janeiro é Jano que nos abre a porta do ano, olhando com uma face para um lado e com a outra para o outro. Acreditam muitos que ele olha para o passado como algo de irremediável e para a frente, com bom augúrio, dando passagem a tudo o que de bom virá com o novo ano. Foi, a partir do dom da “dupla ciência”, atribuída por Saturno, segundo a mitologia romana, que os homens foram construindo este deus, atribuindo-lhe duas faces e concedendo-lhe o poder de superintender e vigiar todos os lugares de passagem, pois que é só no limiar que se têm os dois lados – um, já passado; o outro, a passar.
Com o tempo e com imaginação ele tornou-se o guardião do ano novo que lhe deve, a ele, o nome do seu primeiro mês. E associou-se também a Junho, a partir da Idade Média, quando se associou Jano a João, a S. João Baptista, filho de Isabel e anunciador da vinda de Jesus à Terra. Construiu-se uma alegoria cristã, segundo a qual João se deixaria ofuscar pela luz do seu primo, Jesus. Ele, sim, a Luz da Vida. Ambos eram comparados ao sol, mas um brilharia mais forte do que o outro. E assim, João, a partir de hoje, até ao solstício de Inverno, irá lentamente perder a sua luz, para a dar a Jesus. E, a partir de Dezembro, Jesus será o Rei. O Sol. A Luz que iluminará os homens de boa vontade.
Feita a comparação e juntando os símbolos do passado pagão aos do cristianismo, desfez-se o sentido da festa solsticial e fez-se a festa cristã.

24 de junho de 2010

Flambe feu ...


Flambe feu;
Je te donnerai un œuf;
flambe gros,
je t’en donnerai neuf,
flambe petit,
Je t’en donnerai dix

Canção francesa da região do Dauphiné
In Philippe Walter - Mythologie Chrétienne, p.193

Da celebrações pré-cristãs, pelo solstício de Verão, restam-nos as fogueiras de São João, feitas de ramos bem cheirosos, os manjericos, os alhos porros, as alcachofras e a erva-de-São João.
As fogueiras fazem-se noutras épocas do ano tão marcantes como o solstício de Verão. Subsistem no Natal de Trás-os-Montes. Disfarçam-se em "queimas de Judas", "queimas dos compadres" e círios pascais, pelo Carnaval ou pela Páscoa. Escondem-se dentro de abóboras, a 1 de Novembro, ou noutras fantasias, mas todas elas manifestações, mais ou menos distintas, de um mesmo rito primordial - o culto ao sol.


Hoje, o 24 de Junho, festeja-se de variadíssimas formas, pelo país inteiro. Desde o mediatizado S. João do Porto, passando por alguns dos mais significativos, como o de Monforte da Beira e a Bugiada do Sobrado, e acabando nos festejos onde persiste quase unica e exclusivamente o convívio, à volta de uma fogueira e de uma sardinhada.
Na Serra dos Mangues (S. Martinho do Porto, Alcobaça), uma pequena associação, convocou os vizinhos para celebrar São João. Sardinhas, febras, pão e vinho, associados ao convívio, deram vida à festa. No ar espalhou-se o fumo com cheiro a rosmaninho e alecrim.
A Serra dos Mangues e toda aquela zona costeira está cada vez mais povoada de estrangeiros, alemães, ingleses e holandeses, mas poucos responderam ao convite.

23 de junho de 2010

Véspera de S. João

Era hoje que um rancho de raparigas ia ao pinhal apanhar as flores que mais tempos se conservassem viçosas. Roxas, brancas e amarelas.
As outras iam aos jardins das vizinhas, recolhendo, em braçados, rosas, alecrim, alfazema e outras verduras que dessem cor ao arco que à noite iriam enfeitar. O arco era uma armação em madeira que ficavam sempre, de ano para ano, em casa de quem desse mais jeito e que, no ano seguinte, seria condignamente reparado. Chamavam-lhe arco, mas tinha mais a forma de rectângulo incompleto, com a parte de cima a dar o jeito de coroa e na parte de baixo, dois grandes pés que o sustentavam.
À tardinha, a tarefa dos rapazes era pregar daqui, pregar dacolá, segurar mais ali, levantar mais acolá. A pouco e pouco, mas com rapidez, punham o arco num brinquinho, pronto para as raparigas armarem. Aos miúdos mais pequenos não escapava este frenesim que invadia o lugar. Às mães também não. Vigilantes, aproveitavam o momento para irem à fonte de cântaro deitado sobre a rodilha que lhes assentava sobre a cabeça. De regresso, traziam-no em equilibro, direitinho, mesmo que tivessem de se voltar para trás, amiúde, soltando recomendações às raparigas solteiras e, talvez virgens.
Armado o arco, ele era levantado, junto às bicas, e preso à parede caiada de branco. Era um gosto fazer da mão uma concha, beber a água fresca que corria ininterruptamente, olhando o arco, como se fosse uma porta florida para deixar passar os sonhos.
A ceia fazia-se a correr. E era logo a seguir, por volta das dez da noite, que as raparigas, graças ao S. João, tinham permissão para se juntarem na fonte e fazerem uma fogueira no meio da estrada, que os mais afoitos saltariam. Elas não. Ficavam de lado, rindo, batendo palmas perante a perícia deles, desdenhando dos mais exibicionistas e acirrando os mais tímidos.
Mas a coisa mudava de figura quando chegava o som da concertina do Zé Danita e os olhares matreiros dos rapazes se cruzavam com os delas, ora aquiescentes ora de indiferença ou até de desprezo, quando pretendiam galar galo que cantasse mais alto.
Dançavam em roda, à volta da fogueira que, se ia extinguindo e, lentamente, se reduzia a brasido. Quanto menos luz ela emanava, mais os corpos, agora já a dois, se aproximavam, suados e desejosos de transir, a sós, os efeitos do desejo, já que mais, ali não lhes era permitido.

22 de junho de 2010

Viagem à Berlenga

Rui Veloso apadrinha candidatura das Berlengas a Maravilha Natural

É o título de uma notícia da Gazeta das Caldas de 18 de Junho.
A minha atenção fixa-se nos nomes da comitiva que irá hoje mesmo à Berlenga, dar voz à candidatura da ilha a “7 Maravilhas Naturais de Portugal”: Rui Veloso, Carlos Magno (jornalista e comentador político), Ida Guilherme (artesã), João Lagos (empresário), Jorge Jesus (treinador de futebol), Miguel Arrobas(nadador), Pedro Salgado (biólogo e ilustrador científico) e Sónia Balacó (modelo e actriz). Diz a notícia que o que os une é serem todos amigos das Berlengas e estarem, pelo seu passado, mais ou menos recente, ligados ao arquipélago.
Fixo-me no nome e na figura de Ida Guilherme, rendeira, pintora e poeta que passou grande parte da sua vida nas Berlengas, onde os seus pais passavam todos os verões. Foi lá, na ilha, que aprendeu o som dos bilros, que desenhou palavras no vento, enquanto vagueava, remando, por entre as brechas que o mar abria nas rochas e descobria a beleza das grutas. Foi lá que amou o tempo do mar e das gaivotas. Foi de lá que trouxe um acerado entusiasmo pela defesa do seu património.
Por isso tem publicado livros, a suas expensas, sobre Peniche, sobre as ilhas, as rendas e as paisagens.
E recentemente iniciou um blog intitulado Rendas de Bilros de Peniche .
Por isso, gostei muito de ver o seu nome associado a esta viagem.

21 de junho de 2010

Recomeçar

Com a chegada do Verão, agora mesmo, às 12h18m, retomo o blog.

6 de janeiro de 2010

Porto Santo em Festa - Duas histórias de uma noite de Reis

I -Eram 5 da manhã quando o grupo se lembrou de ir bater à porta de fulano amigo, obviamente. As luzes estavam apagadas. O grupo cantou, cantou, mas de dentro, nenhum movimento, nem sinal de vida chegavam. O grupo continuou a cantar e insistiu. Abriu-se a luz. O grupo continuou a cantar. Abriu-se a porta. Pai, mãe, duas filhas adolescentes e uma avó recebem-nos, no hall, todos de pijama e roupão. A casa estava alinhadíssima e a mesa das iguarias impecavelmente posta. A festa, a cantoria, a alegria espalharam-se pela casa. Ninguém mostrou indícios de cansaço ou de aborrecimento.
II- Por volta das 6 da manhã, há uma palavra de ordem: “vamos a casa dos meus pais”, diz uma voz feminina. Ela encabeça o cortejo constituído por vários carros e lá fomos. A cena repete-se. As luzes acendem-se e um casal de uns 70 anos aparece, um pouco desgrenhado, de roupão, a abrir a porta com bonomia e sorridente! Recusam-nos a entrada pela porta que haviam aberto porque nos reservam uma entrada mais digna, a entrada da sala onde está a lapinha e que é de honra dar a ver. Enorme, montada a rigor, ocupando metade da sala, subindo parede acima, forrada de papel, com lagos e montanhas e toda decorada de pastores e flores características da ilha. Só depois nos indicam o caminho para outros cómodos, onde se encontra a mesa posta, a mesa que aguarda pelos cantores, seja a que horas for, porque, como dizem, seria uma desonra para eles não terem sido escolhidos para abrirem as portas às filhas e netos que integravam este grupo.
Já passava das 7 quando parte do grupo começa a dar sinal de cansaço, mas a festa continuou para outros que só manhã já tardia chegaram à cama.

5 de janeiro de 2010

Porto Santo em Festa

Em Porto Santo, Dezembro é o mês d’A Festa, do Natal. Esta forma de dizer traduz a importância que foi dada às festas solsticiais e que é dada ao Natal, A Festa. Não é, pois, de estranhar a riqueza das ornamentações nas ruas, nem o facto de se arrastarem até finais de Janeiro.
A Festa começa na primeira semana de Dezembro, com o armar da lapinha ou presépio, e nunca termina antes de 15 de Janeiro, dia de Santo Amaro. Entretanto passou por pontos altos como as missas do parto, a missa do galo e irá ter o seu epílogo na noite de 5 para 6 de Janeiro – o cantar dos Reis.
Por toda a ilha organizam-se grupos de amigos que passam toda a noite, literalmente, toda a noite, a cantar de casa em casa. Há também os grupos organizados (5-6) que, por volta das 11 da noite, começam a cantar, junto ao presépio da vila. Eles são compostos pelos cantores, chamados pastores, pelos tocadores e por três Reis Magos vestidos a rigor. É num palco instalado para o efeito que actua cada um destes grupos, cantando quadras ingénuas, simples, relacionadas ora com o nascimento do Menino, ora com o Ano Novo, ora com o Dia de Reis. Depois da actuação, os grupos dirigem-se para um dos restaurantes da praça, onde estão dispostas várias mesas com iguarias, à volta das quais se come e convive.
Faz parte dos costumes de Natal servir vinho de Porto Santo, canja de galinha e bolo do caco, recheado de galinha desfiada, além dos bolos e doces.
Entretanto, já muitos grupos andam, pela serra, cantando, mas estes quatro, os organizados, só bem depois da meia-noite abandonam a praça para começarem o périplo que durará a noite toda. Começam pela casa do pároco e o ritual desenrola-se da seguinte forma, e sempre da mesma maneira em todas as casas: cantam as quadras da chegada. A luz apaga-se no interior da casa. Cantam as quadras que pedem para abrir a porta, depois das quais se abre a porta. Entram e cantam as quadras de entrada. Já dentro de casa convivem. Cantam. Conversam. Comem e bebem vinho de Porto Santo.

Chegada dos reizeiros

Segue-se a casa do Presidente da Câmara e de outras entidades da ilha. Só pelas 4 ou 5 da manhã vão aos amigos. Alguns já estão deitados, mas levantam-se e a cerimónia decorre como se nada de anormal tivesse acontecido. As mesas em todas as casas estão postas e aguardam pelos reizeiros que podem chegar à 6 ou 7 da manhã.






Convívio - música, comes e bebes.

4 de janeiro de 2010

Populus e Janus

Dizer que o mês de Janeiro é consagrado a Jano, divindade que é representada com duas faces, voltadas em sentido contrário, simbolizando o passado e o futuro ou a entrada e a saída da cidade, da casa ou de um qualquer sítio, é corriqueiro, de tão batido que está este tema.
Acrescentar que é a Saturno que Jano ficou a dever o dom da dualidade e da ambivalência, talvez seja dizer qualquer coisa menos comum, para a maioria das pessoas.
Dizer ainda que é sobretudo à interpretação dos homens que esta divindade deve o facto de ser considerado o guardião das portas que preside a todos os princípios e aos momentos de transição, é confirmar que a todos os dias deste mês - porta de um novo ano, iniciador de um novo ciclo e até, para alguns, de uma vida nova - temos de apor o mês de Janeiro, para orientação cronológica de todos.

Eu gosto de associar a este mês e, naturalmente, ao deus que o nomeou, uma árvore – o choupo - porque as suas folhas têm a característica da dualidade de Jano. Têm duas cores – verde ou amarelo, de um lado, conforme a estação do ano, e branca do outro. Sei que o choupo está associado a Hércules que visitou os infernos e que foi coroado com choupo, mas, para mim, ao lado de Jano e de Janeiro deveria figurar sempre um choupo. Gosto do seu nome latino – populus; de como os franceses o nomeiam – peulplier, ou de poplar, como lhe chamam os ingleses. Também por isso, o associo a Caldas da Rainha, onde há a igreja e a freguesia do Pópulo, bem como o café Populus.
Bem sei que é no solstício de Verão que as suas folhas giram ao sabor do sol e que é na Primavera que o choupo se torna mais vistoso e lança flocos de algodão para os campos, mas gosto de o homenagear nesta altura de balanço, de intenções e de formulação de desejos e auspícios para um novo ano, sem esquecer que o meu presente é feito com a riqueza do meu passado. Contradições que me unem a uma árvore, ela própria cheia de contradições – nasce em terrenos húmidos e dá-nos os fósforos com que fazemos fogo. Gosto desta dualidade, como gosto da ambivalência dos humanos.

2 de janeiro de 2010

O Homem de muitas orelhas

Quando chega o dia 2 de Janeiro, ela conta a mesma estória o que, a mim, nada me incomoda. Oiço-a como se fosse a primeira vez e sei que, mais tarde ou mais cedo serei eu a contá-la.
Ela atravessava a estrada diariamente para ir de sua casa a casa da avó, enquanto pequenita, mas no dia 2, corria mais veloz e chegava mais cedo.
A avó cumprimentava-a sempre do mesmo modo. Olá, Nina, já cá estás? Ela respondia com frequência que não gostava que a avó a tratasse por Nina. Valia mais chamar-lhe Tareca, como faziam os tios, porque a achavam parecida com os gatos, devido aos seus olhos tão marcadamente verdes. A avó, sem dar grande importância ao comentário, replicava docemente que ela era a sua menina, a sua nina, e assim a chamava, para abreviar. E os dias continuavam quase sempre iguais, apenas interrompidos pelo ritmo das festividades ou das colheitas, quase sempre entremeado por um provérbio a condizer.
No dia 2 de Janeiro o diálogo era sobre o homem que ali haveria de passar "com tantas orelhas como o ano tem de dias". Esta frase era sempre, mas sempre dita desta forma, pela avó. "Nina, já viste aí passar o homem que tem tantas orelhas, como o ano tem de dias?". A neta ria e respondia que ele deveria estar a passar e que, por isso, era melhor irem ambas para a janela. E lá iam as duas ver passar os homens que iam pegar ao trabalho, ou na serração Madeca ou na oficina do Ferraz ou na Tijomel. Uns iam de bicicleta, outros a pé, mas nenhum de carro. Poucas mulheres se viam. E as crianças só apareciam, de batita branca e mala às costas, por volta das 8 e pouco.
E o tal homem, nada!
Entretanto chegava o padeiro, a buzinar, de bicicleta, com uns seirões, em verga, atrás, onde trazia o pão acabado de fazer.
E o tal homem, nada!
Mas não fazia diferença nenhuma, nem a uma nem a outra, até que ao fim do dia, ambas gracejavam em total cumplicidade: "Afinal o homem não teve tempo para passar por cá hoje. Esperamos para o ano".
E assim se tornava cíclico o tempo de espera pelo novo dia 2 de Janeiro, embora a 3, a avó desvendasse o mistério do homem que afinal tinha passado, ou melhor dos muitos homens que afinal por ali tinham passado porque nesse dia o ano só tem dois dias como, naturalmente, os homens todos. Excepção feita a alguns, como Van Gogh.
Foi assim que ela aprendeu a esperar e a simular o encantamento da surpresa das estórias, mesmo que já bem conhecidas. Também foi assim que conheceu Girassóis em Janeiro.
Hoje, dia 2, ela voltou a contar esta história e a desejar que, para o ano, possamos esperar, de novo, pelo homem que tem tantas orelhas, como o ano tem de dias.

1 de janeiro de 2010

A Última estória de 2009

Em frente ao balcão do banco estendia-se uma longa bicha de pessoas. Todas estavam de pé e todas tinham papéis ou dinheiro na mão. Algumas até já enrolavam entre os dedos uma esferográfica para assinar o que desse e viesse.
Quando o homem, que estava à minha frente, pôs as notas em cima do balcão, eu só vi a cabeça da funcionária a acenar insistentemente que não. Pareceu-me que não havia nada a fazer, embora nem supusesse do que se tratava, nem tivesse conseguido perceber o que o homem, abandonando o balcão, e olhando-me desiludido e inconformado dizia:”então agora nem depositar o dinheiro posso”.
Só depois de ter sido atendida percebi o sentido das suas palavras.
E foi, nessa altura, que o vi já noutra fila. Olhou-me, de novo, e contou-me, num fôlego, que tinha sido impedido de fazer o depósito porque não sabia o número da conta da filha, que estava a estudar, no estrangeiro, e que precisava que ele lhe depositasse uns euros. Assim que recebeu o pedido através de SMS, veio logo ao banco porque amanhã era feriado e como já eram quase 3 horas, levantou logo ali os 200 Euros. Mas a funcionária insistiu: não, não podemos, sem o número de conta. E ele também: Oh! minha senhora, mas é a minha filha. Eu digo-lhe o nome. E assim continuaram: Não podemos. Digo-lhe a data de nascimento. Não pode ser. Mas então… Não pode ser. Mas então? Não pode ser. Dirija-se, então à gerência. E enquanto o homem me contava esta estória e eu começava aperceber a insistência do abanar da cabeça da funcionária, passa uma senhora à nossa frente a quem eu espontaneamente perguntei se, por acaso, era ela a gerência. Que não, mas que podia ajudar a resolver. Explicado o assunto num ápice, a senhora, com um sinal, mandou-o entrar para um cubículo envidraçado.
O homem entrou e eu esperei. Foi rápido. Nem demorou 5 minutos para que eu o visse sair a abanar a cabeça, não como a funcionária, não com tanta veemência, mas com uma certa confusão que ele nem queria entender porque, sem qualquer explicação ou pergunta, a tal senhora, de imediato, lhe depositou os 200€. Não interessa o resto! O importante é que já lá estão.
- Sem o número de conta?
- Sim, sem o número de conta.

Que o ano que começa amanhã nos traga gente simpática e eficiente, como a tal senhora, que não era gerente, mas que podia (e conseguiu) ajudar.
Que os nossos problemas se resolvam tão simplesmente como este dos 200 euros.
Que nós tenhamos força para ultrapassar o acenar de cabeça, em tom negativo, dos pequenos poderes dispostos a dificultar-nos a vida.


Caldas da Rainha, 31 de Dezembro de 2009