6 de janeiro de 2010

Porto Santo em Festa - Duas histórias de uma noite de Reis

I -Eram 5 da manhã quando o grupo se lembrou de ir bater à porta de fulano amigo, obviamente. As luzes estavam apagadas. O grupo cantou, cantou, mas de dentro, nenhum movimento, nem sinal de vida chegavam. O grupo continuou a cantar e insistiu. Abriu-se a luz. O grupo continuou a cantar. Abriu-se a porta. Pai, mãe, duas filhas adolescentes e uma avó recebem-nos, no hall, todos de pijama e roupão. A casa estava alinhadíssima e a mesa das iguarias impecavelmente posta. A festa, a cantoria, a alegria espalharam-se pela casa. Ninguém mostrou indícios de cansaço ou de aborrecimento.
II- Por volta das 6 da manhã, há uma palavra de ordem: “vamos a casa dos meus pais”, diz uma voz feminina. Ela encabeça o cortejo constituído por vários carros e lá fomos. A cena repete-se. As luzes acendem-se e um casal de uns 70 anos aparece, um pouco desgrenhado, de roupão, a abrir a porta com bonomia e sorridente! Recusam-nos a entrada pela porta que haviam aberto porque nos reservam uma entrada mais digna, a entrada da sala onde está a lapinha e que é de honra dar a ver. Enorme, montada a rigor, ocupando metade da sala, subindo parede acima, forrada de papel, com lagos e montanhas e toda decorada de pastores e flores características da ilha. Só depois nos indicam o caminho para outros cómodos, onde se encontra a mesa posta, a mesa que aguarda pelos cantores, seja a que horas for, porque, como dizem, seria uma desonra para eles não terem sido escolhidos para abrirem as portas às filhas e netos que integravam este grupo.
Já passava das 7 quando parte do grupo começa a dar sinal de cansaço, mas a festa continuou para outros que só manhã já tardia chegaram à cama.

5 de janeiro de 2010

Porto Santo em Festa

Em Porto Santo, Dezembro é o mês d’A Festa, do Natal. Esta forma de dizer traduz a importância que foi dada às festas solsticiais e que é dada ao Natal, A Festa. Não é, pois, de estranhar a riqueza das ornamentações nas ruas, nem o facto de se arrastarem até finais de Janeiro.
A Festa começa na primeira semana de Dezembro, com o armar da lapinha ou presépio, e nunca termina antes de 15 de Janeiro, dia de Santo Amaro. Entretanto passou por pontos altos como as missas do parto, a missa do galo e irá ter o seu epílogo na noite de 5 para 6 de Janeiro – o cantar dos Reis.
Por toda a ilha organizam-se grupos de amigos que passam toda a noite, literalmente, toda a noite, a cantar de casa em casa. Há também os grupos organizados (5-6) que, por volta das 11 da noite, começam a cantar, junto ao presépio da vila. Eles são compostos pelos cantores, chamados pastores, pelos tocadores e por três Reis Magos vestidos a rigor. É num palco instalado para o efeito que actua cada um destes grupos, cantando quadras ingénuas, simples, relacionadas ora com o nascimento do Menino, ora com o Ano Novo, ora com o Dia de Reis. Depois da actuação, os grupos dirigem-se para um dos restaurantes da praça, onde estão dispostas várias mesas com iguarias, à volta das quais se come e convive.
Faz parte dos costumes de Natal servir vinho de Porto Santo, canja de galinha e bolo do caco, recheado de galinha desfiada, além dos bolos e doces.
Entretanto, já muitos grupos andam, pela serra, cantando, mas estes quatro, os organizados, só bem depois da meia-noite abandonam a praça para começarem o périplo que durará a noite toda. Começam pela casa do pároco e o ritual desenrola-se da seguinte forma, e sempre da mesma maneira em todas as casas: cantam as quadras da chegada. A luz apaga-se no interior da casa. Cantam as quadras que pedem para abrir a porta, depois das quais se abre a porta. Entram e cantam as quadras de entrada. Já dentro de casa convivem. Cantam. Conversam. Comem e bebem vinho de Porto Santo.

Chegada dos reizeiros

Segue-se a casa do Presidente da Câmara e de outras entidades da ilha. Só pelas 4 ou 5 da manhã vão aos amigos. Alguns já estão deitados, mas levantam-se e a cerimónia decorre como se nada de anormal tivesse acontecido. As mesas em todas as casas estão postas e aguardam pelos reizeiros que podem chegar à 6 ou 7 da manhã.






Convívio - música, comes e bebes.

4 de janeiro de 2010

Populus e Janus

Dizer que o mês de Janeiro é consagrado a Jano, divindade que é representada com duas faces, voltadas em sentido contrário, simbolizando o passado e o futuro ou a entrada e a saída da cidade, da casa ou de um qualquer sítio, é corriqueiro, de tão batido que está este tema.
Acrescentar que é a Saturno que Jano ficou a dever o dom da dualidade e da ambivalência, talvez seja dizer qualquer coisa menos comum, para a maioria das pessoas.
Dizer ainda que é sobretudo à interpretação dos homens que esta divindade deve o facto de ser considerado o guardião das portas que preside a todos os princípios e aos momentos de transição, é confirmar que a todos os dias deste mês - porta de um novo ano, iniciador de um novo ciclo e até, para alguns, de uma vida nova - temos de apor o mês de Janeiro, para orientação cronológica de todos.

Eu gosto de associar a este mês e, naturalmente, ao deus que o nomeou, uma árvore – o choupo - porque as suas folhas têm a característica da dualidade de Jano. Têm duas cores – verde ou amarelo, de um lado, conforme a estação do ano, e branca do outro. Sei que o choupo está associado a Hércules que visitou os infernos e que foi coroado com choupo, mas, para mim, ao lado de Jano e de Janeiro deveria figurar sempre um choupo. Gosto do seu nome latino – populus; de como os franceses o nomeiam – peulplier, ou de poplar, como lhe chamam os ingleses. Também por isso, o associo a Caldas da Rainha, onde há a igreja e a freguesia do Pópulo, bem como o café Populus.
Bem sei que é no solstício de Verão que as suas folhas giram ao sabor do sol e que é na Primavera que o choupo se torna mais vistoso e lança flocos de algodão para os campos, mas gosto de o homenagear nesta altura de balanço, de intenções e de formulação de desejos e auspícios para um novo ano, sem esquecer que o meu presente é feito com a riqueza do meu passado. Contradições que me unem a uma árvore, ela própria cheia de contradições – nasce em terrenos húmidos e dá-nos os fósforos com que fazemos fogo. Gosto desta dualidade, como gosto da ambivalência dos humanos.

2 de janeiro de 2010

O Homem de muitas orelhas

Quando chega o dia 2 de Janeiro, ela conta a mesma estória o que, a mim, nada me incomoda. Oiço-a como se fosse a primeira vez e sei que, mais tarde ou mais cedo serei eu a contá-la.
Ela atravessava a estrada diariamente para ir de sua casa a casa da avó, enquanto pequenita, mas no dia 2, corria mais veloz e chegava mais cedo.
A avó cumprimentava-a sempre do mesmo modo. Olá, Nina, já cá estás? Ela respondia com frequência que não gostava que a avó a tratasse por Nina. Valia mais chamar-lhe Tareca, como faziam os tios, porque a achavam parecida com os gatos, devido aos seus olhos tão marcadamente verdes. A avó, sem dar grande importância ao comentário, replicava docemente que ela era a sua menina, a sua nina, e assim a chamava, para abreviar. E os dias continuavam quase sempre iguais, apenas interrompidos pelo ritmo das festividades ou das colheitas, quase sempre entremeado por um provérbio a condizer.
No dia 2 de Janeiro o diálogo era sobre o homem que ali haveria de passar "com tantas orelhas como o ano tem de dias". Esta frase era sempre, mas sempre dita desta forma, pela avó. "Nina, já viste aí passar o homem que tem tantas orelhas, como o ano tem de dias?". A neta ria e respondia que ele deveria estar a passar e que, por isso, era melhor irem ambas para a janela. E lá iam as duas ver passar os homens que iam pegar ao trabalho, ou na serração Madeca ou na oficina do Ferraz ou na Tijomel. Uns iam de bicicleta, outros a pé, mas nenhum de carro. Poucas mulheres se viam. E as crianças só apareciam, de batita branca e mala às costas, por volta das 8 e pouco.
E o tal homem, nada!
Entretanto chegava o padeiro, a buzinar, de bicicleta, com uns seirões, em verga, atrás, onde trazia o pão acabado de fazer.
E o tal homem, nada!
Mas não fazia diferença nenhuma, nem a uma nem a outra, até que ao fim do dia, ambas gracejavam em total cumplicidade: "Afinal o homem não teve tempo para passar por cá hoje. Esperamos para o ano".
E assim se tornava cíclico o tempo de espera pelo novo dia 2 de Janeiro, embora a 3, a avó desvendasse o mistério do homem que afinal tinha passado, ou melhor dos muitos homens que afinal por ali tinham passado porque nesse dia o ano só tem dois dias como, naturalmente, os homens todos. Excepção feita a alguns, como Van Gogh.
Foi assim que ela aprendeu a esperar e a simular o encantamento da surpresa das estórias, mesmo que já bem conhecidas. Também foi assim que conheceu Girassóis em Janeiro.
Hoje, dia 2, ela voltou a contar esta história e a desejar que, para o ano, possamos esperar, de novo, pelo homem que tem tantas orelhas, como o ano tem de dias.

1 de janeiro de 2010

A Última estória de 2009

Em frente ao balcão do banco estendia-se uma longa bicha de pessoas. Todas estavam de pé e todas tinham papéis ou dinheiro na mão. Algumas até já enrolavam entre os dedos uma esferográfica para assinar o que desse e viesse.
Quando o homem, que estava à minha frente, pôs as notas em cima do balcão, eu só vi a cabeça da funcionária a acenar insistentemente que não. Pareceu-me que não havia nada a fazer, embora nem supusesse do que se tratava, nem tivesse conseguido perceber o que o homem, abandonando o balcão, e olhando-me desiludido e inconformado dizia:”então agora nem depositar o dinheiro posso”.
Só depois de ter sido atendida percebi o sentido das suas palavras.
E foi, nessa altura, que o vi já noutra fila. Olhou-me, de novo, e contou-me, num fôlego, que tinha sido impedido de fazer o depósito porque não sabia o número da conta da filha, que estava a estudar, no estrangeiro, e que precisava que ele lhe depositasse uns euros. Assim que recebeu o pedido através de SMS, veio logo ao banco porque amanhã era feriado e como já eram quase 3 horas, levantou logo ali os 200 Euros. Mas a funcionária insistiu: não, não podemos, sem o número de conta. E ele também: Oh! minha senhora, mas é a minha filha. Eu digo-lhe o nome. E assim continuaram: Não podemos. Digo-lhe a data de nascimento. Não pode ser. Mas então… Não pode ser. Mas então? Não pode ser. Dirija-se, então à gerência. E enquanto o homem me contava esta estória e eu começava aperceber a insistência do abanar da cabeça da funcionária, passa uma senhora à nossa frente a quem eu espontaneamente perguntei se, por acaso, era ela a gerência. Que não, mas que podia ajudar a resolver. Explicado o assunto num ápice, a senhora, com um sinal, mandou-o entrar para um cubículo envidraçado.
O homem entrou e eu esperei. Foi rápido. Nem demorou 5 minutos para que eu o visse sair a abanar a cabeça, não como a funcionária, não com tanta veemência, mas com uma certa confusão que ele nem queria entender porque, sem qualquer explicação ou pergunta, a tal senhora, de imediato, lhe depositou os 200€. Não interessa o resto! O importante é que já lá estão.
- Sem o número de conta?
- Sim, sem o número de conta.

Que o ano que começa amanhã nos traga gente simpática e eficiente, como a tal senhora, que não era gerente, mas que podia (e conseguiu) ajudar.
Que os nossos problemas se resolvam tão simplesmente como este dos 200 euros.
Que nós tenhamos força para ultrapassar o acenar de cabeça, em tom negativo, dos pequenos poderes dispostos a dificultar-nos a vida.


Caldas da Rainha, 31 de Dezembro de 2009