21 de março de 2009

Vidas d'aqui - 2

Rendizer a poesia

Encontrámo-nos no seu atelier.
Não sei descrevê-lo como gostaria porque ela é que me prendeu a atenção. Tenho na memória quadros, muitos, suspensos nas paredes. Eram retratos de ruas, de homens de Peniche, do porto, de flores, de recantos, de mar, de gaivotas e dois de rendas. Num, estavam as suas mãos a rendilhar sobre a almofada coberta de bilros e de renda. Outro era um naperon pormenorizadamente pintado, juntamente com uns búzios.
Havia tintas, pincéis, livros, poemas e uma almofada de bilros, em execução.
Havia também rendas encaixilhadas. Uma árvore, a cores, com extensas raízes. Uma caravela. E mais, muitos mais trabalhos, mas não recordo muito mais porque ela é que me prendeu a atenção.
Disponível. Evitou atender pessoas e telefones. Falou de rendas, de rendilheiras, do trique-trique dos bilros e da sua aprendizagem, desde os seis anos de idade.
Conheceu as amarguras das mulheres de Peniche que, em algumas épocas do ano, sustentavam marido e filhos, à custa de noites e dias debruçadas sobre a almofada, sentadas no chão.
Conheceu as oficinas e as escolas de sujeição à disciplina rígida quais as crianças estavam sujeitas.
Tornou-se mestra. Ensinou muitas mulheres e hoje é um dos sustentáculos desta produção artística, pela forma como se envolve na sua manutenção, defesa e inovação.
Ontem enviou-me uma renda e uma poesia, ambas da sua autoria porque “a nossa renda de bilros é também poesia”.
E eu agradeço, divulgando e agradecendo quanto tenho aprendido sobre Peniche e o ensino das rendas.
Meu coração bate, bate
como os bilros da almofada
e ao som do tric …tric
nasce em minha alma a alvorada.
brilham tanto os alfinetes
sobre o pique de açafrão,
que os seus pontos transparentes,
são nuvens de encantamento
que me enchem de emoção.

os bilros,
passarinhos esvoaçantes
deixam música no ar
em sons leves
sussurrantes,
aos ouvidos do luar.

Quem vê a renda surgir
tecida de leves fios
entrecruzados de esperança,
de marés vivas,
de sonhos,

de ondas brancas de espuma,
de sorrisos de crianças
embalados na maresia,
sobre o pique, na almofada,
verá por certo,
à tardinha
que, por milagre ou magia,
a renda de espuma branca
já não é renda,
“é poesia”
IDA GUILHERME

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