19 de abril de 2009

Roubar Figos é coisa santa

Quando Abril começava a despontar e, se o sol fosse generoso, iniciava-se a limpeza dos canteiros, no braço da Lagoa que se estende até quase ao Arelho. A lama arrastada pelas marés e pelas chuvas era retirada pelo valador e depois levada para os terrenos contíguos, pelas mulheres, para se dar início à tarefa da apanha do sal.
Era um trabalho que demorava cerca de um mês, com mais de uma dezena de mulheres a correrem pelas valas, como formiguinhas, de gamelas à cabeça.
Era assim, na Lagoa de Óbidos, desde o nascimento das salinas, em 1930, até 1969, ano em que ficaram desactivadas.
Felícia, hoje com 83 anos, filha de pais abastados, donos de terrenos e de animais, nunca trabalhou nas salinas, que era sítio para filhas de gente de menos posses. Mas trabalhou, e a sério, nos campos, a sachar e a mondar. Calcorreou bons quilómetros, para levar o jantar aos homens que trabalhavam à jorna. Ia, de madrugada, vender para a praça das Caldas. Regressava, a horas tardias, sem comer e, por vezes, montada no macho, a abrir caminho ao pai, não fosse aparecer a ladroagem e ficar com o dinheiro da venda.
Nunca trabalhou nas salinas mas lembra-se muito bem de se regalar com a paisagem , por isso, quando o pai lhe dava ordem para ir trabalhar para um terreno que proporcionava essa vista, até agradecia. Porém, na sua mente havia sempre um mistério indecifrável. "Este estafermo da figueira, meu pai - dizia ela - vale mais arrancar-se. Nunca dá figos! Ainda por cima também nunca se lhe vê flor! Nunca cumpre a obrigação de dar fruto! Isto é coisa que até assusta. Parece obra do diabo."
Dizia-se, e ainda hoje se acredita, mas talvez Felícia não soubesse, que a figueira é uma árvore amaldiçoada e tão nefasta que seca o leite às mulheres que por ela passam.
Dizem que este castigo foi dado à figueira porque Judas se enforcou numa e, apesar de se saber que não é bem assim, continua a propagar-se a crença porque torna a coisa mais mágica, mais vibrante, mais interessante.
Os jovens já vêm com a verdade da escola: "as flores não se vêem, porque estão fechadas dentro de um receptáculo chamado sícone, que é o figo", mas às mães e às avós nem sempre dá jeito acreditar nestas verdades irrefutáveis e continuam a olhar para a figueira como a árvore que é tão má que até faz rebentar os lábios a quem come figos perto dela.
Seja como for, o que interessa para o caso é que Piedade, ela sim, trabalhadora nas salinas durante trinta e seis anos, muito tempo passado, desvendou o segredo da aparente infertilidade das figueiras.
As rapariguitas salineiras andavam sempre com o olho nos figos da figueira de Felícia. Os que se destacavam, os mais maduros não ficavam lá muito tempo. Às escondidas, davam lá um pulo e iam-nos colhendo, ao que se pode literalmente dizer que lhes chamavam um figo. Elas acreditavam no que se dizia, que a figueira é árvore tão ruim que nem pecado era roubar-lhe os figos.
Era, então, uma santa acção, esta de retirar os figos à árvore amaldiçoada. Matava-lhes a fome em horas de faina apertada e dura.
Estória escrita depois de uma tarde de conversa no Centro de Melhor Idade do Arelho.
Felícia tem hoje 83 anos e Piedade, 76 anos.
Os nomes são fictícios.

3 comentários:

Luis Eme disse...

mais uma lida história, feita de memórias da gente deste país.

abraço Teresa

Luis Eme disse...

(linda...)

saloia disse...

:)
muito linda